Há uns meses fui convidado por duas primas para um grupo de WhatsApp com este nome: “Primos Pelo Mundo”. O convite surpreendeu-me porque essas primas são de uma geração muito mais nova do que a minha e pelo nome escolhido para o grupo. A nossa família tem a sua raiz na Praia da Vitória, mas efetivamente está espalhada pelo mundo. No primeiro quartel do século XX, os meus tios Francisco e José, irmãos de minha mãe, emigraram para a Califórnia. Uns anos depois, e do mesmo lado da família, o tio António partiu para o Rio de Janeiro. Passado algum tempo, um primo meu foi ter com esse tio e, passados uns anos, mudou-se para a Califórnia para trabalhar com o tio José. Na segunda metade do século XX, a minha irmã emigrou para o Brasil com a família; anos depois vários parentes próximos emigraram, uns para a Califórnia e outros, para o Canadá. Isto é, a minha família é, no que respeita à emigração, tipicamente açoriana: temos “Primos Pelo Mundo”.
Do grupo do WhatsApp sou o mais velho, oitenta anos. Como sempre acontece com este tipo de grupos, nos primeiros tempos houve bastante interação: trocaram-se fotografias antigas com pedidos de identificação de pessoas desconhecidas para alguns; pedidos de informação ou esclarecimentos sobre familiares, o que era natural, porque alguns membros do grupo tinham saído da Terceira muito pequenos e alguns outros nem tinha lá nascido. Nos meus posts, ia respondendo, contando pequenas histórias da família e fazendo referências a tradições terceirenses e açorianas. Pouco a pouco fui percebendo que essas pequenas narrativas despertavam interesse e decidi fazer em cada fim de semana um post contando estórias, apontando datas lembradas, tradições e efemérides. Como por vezes os textos saem um bocado compridos, termino dizendo que quem não tiver tempo ou pachorra para os ler os “arquive” no cesto do lixo.
Ora, nos primeiros dias de maio, já não sei porquê, fui ao YouTube e encontrei vídeos, já de 2025, das três touradas à corda que se realizam no dia 1 de maio e abrem a época taurina na Terceira: Ribeirinha (https://www.youtube.com/watch?v=0-bFm4LGjQc), Fontinhas (https://www.youtube.com/watch?v=m_AiOHrN1Bw), e Terra Chã (https://www.youtube.com/watch?v=O328krAVKM8). Porque sei que vários membros do grupo “Primos Pelo Mundo” estão interessados em tradições açorianas, resolvi fazer um post sobre o assunto no fim de semana. Chegado o domingo, lancei-me na tarefa: anexei os vídeos e tentei escrever um texto.
Comecei por dizer que o dia 1 de maio é, em todo o mundo, o “Dia do Trabalhador”, mas que, na Terceira, é uma data muito especial por uma razão que nada tem a ver com a luta de classes: esse dia é o da abertura da época taurina na Ilha; isto é, começam as touradas à corda, espetáculo que se integra na tauromaquia popular, que terminarão em outubro, nas festas das Lajes.
Expliquei, de seguida, que os espetáculos tauromáquicos, do ponto de vista emocional, incomodam hoje muita gente, provavelmente porque vivemos em sociedades urbanas. Na Ilha Terceira, contudo, as touradas à corda são bem ao gosto do povo e vão de vento em popa, cada ano realizam-se entre 230 e 250 corridas. Do ponto de vista económico é uma atividade importantíssima, só superada pelos supermercados. Acrescentei que também nos Açores há gente que não vê com bons olhos as touradas. Mas não se vê caminho para acabar com elas.
Ao tentar escrever mais alguma coisa sobre o tema, confrontei-me com as dificuldades que a conversação pública sobre o tema da tauromaquia hoje suscita. Na comunicação social, praticamente não se fala no assunto e, se aparece alguma coisa, é em tom de crítica. Em certos meios, se alguém se mostra aficionado, é olhado de esguelha e ouvirá frequentemente dizer que a tourada é um espetáculo bárbaro.
O tema da tauromaquia é complexo e o simplismo com que muitas vezes é apresentado revela uma superficialidade que quase impede a sua discussão. Logo no começo da conversa, os anti-taurinos avançam imediatamente com o argumento dos maus-tratos ao animal que as touradas comportam, e que são os interesses económicos que impedem o seu desaparecimento. Os aficionados, por sua vez, invocam antes de tudo a tradição.
Que as touradas suscitam a problemática dos maus-tratos e que há interesses económicos à volta dos espetáculos taurinos, não há dúvidas. Como disse, na Terceira só há um setor económico com maior impacto: o da distribuição (supermercados). Mas há outras questões levantadas pelas touradas e que raramente são chamadas à colação. Ora há pouco tempo o Prof. José Luís Brandão da Luz publicou, no blogue Azorean Torpor, um texto com o título “Festa Brava” (https://azoreantorpor.wordpress.com/2025/02/05/festa-brava/) que, pela sua ampla e descomplexada visão merece ser lido. O artigo do Professor foi motivado pelo que aconteceu no IV Fórum Mundial da Cultura Taurina realizado em Angra do Heroísmo e na Praia da Vitória, que reuniu mais de 250 pessoas, em que uma intervenção “pouco cuidada” sobre a “sorte de varas” deu origem à tradicional disputa entre os que defendem as touradas e os que se lhe opõem.
Depois de apresentar o tema em debate, o autor afirma: “[s]erá certamente difícil mobilizar argumentos a favor das touradas, mas também o seu contrário não será menos verdadeiro. Todos andam à volta do seu carácter ancestral, que os apoiantes consideram importante para manter as tradições e a identidade regional, assim como a diversidade da oferta cultural. Os que se opõem, contra-argumentam com o lado mais cruel da lide, que acusam de fazer passar, junto de quem nos visita, a imagem pouco edificante de um povo rude, a vibrar de entusiasmo com a tortura do animal. Acrescentam ainda que há muitas tradições que se extinguiram, e que é preciso impor à tourada o mesmo destino”.
Como eu disse acima, a tourada é um fenómeno complexo. Se, como apontam os seus detratores, nas touradas se assiste à “tortura do animal” e o seu desaparecimento ainda não aconteceu pelos interesses económicos que lhe estão associados, o autor, no texto, releva a dimensão festiva das touradas e o papel social da diversão: “[a] festa é uma componente necessária da vida social” porque “é um momento de descompressão que desafia rotinas, ilude regulamentos, interrompe a rigidez da ordem dominante”. Refere a dimensão estética que o espetáculo tem e lembra que não há terra que não tenha festas “simplesmente porque as pessoas gostam e participam intensamente nelas”, e que “[a]o longo do ano, por todo o país e na região [Autónoma dos Açores], há uma quantidade de festas que se realizam. Quem poderá justificar com argumentos convincentes as sanjoaninas, tão vivas e participadas no Porto e Braga e também muito celebradas, em moldes bem diferentes, na Terceira e outras ilhas dos Açores? Estes e muitos outros festejos mantêm-se vivos porque as multidões comparecem com entusiasmo, fazendo deles uma festa em que tomam parte”. Depois de descrever a dimensão social e festiva da “festa brava” o autor conclui: “[a] festa brava tem uma dinâmica própria que tem vindo a ser refinada com o tempo e há de continuar viva enquanto o povo quiser”. Isto é, não é possível matá-la por decreto, embora, digo eu, haja quem deseje fazê-lo, mas, como não pode, vai tendo ajudas com esse objetivo, como a do diretor de programas de RTP que há uns anos decidiu não transmitir corridas de touros porque “não se trata de um conteúdo estratégico”, no que teve o apoio da provedora do telespectador que declarou que “a transmissão de touradas vai contra o bem-estar animal”.
Braga, maio de 2025
José Henrique Silveira de Brito


