Nesta edição entrevistamos José Aurélio Almeida, Grão-mestre da Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos.
Jornal da Praia (JP)- A Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos comemora este ano 30 anos de atividades. O que representa esta data?
José Aurélio Almeida (JAA) - A data do 30.º aniversário da Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos representa, essencialmente e como é habitual nestas ocasiões, uma oportunidade de render homenagem à existência da mesma e ao caminho trilhado até hoje, sem deixar de aproveitar para corresponder ao desafio de refletir sobre o futuro.
Assim, homenageando o espírito e ação visionária dos nossos Confrades Fundadores e reconhecendo o trabalho de todos os que, entretanto, lideraram este projeto e com ele colaboraram, celebramos o contributo da Confraria para a continuação da existência do vinho verdelho dos Biscoitos, bem como para a sua promoção e valorização.
JP – Para quem não conhece uma confraria e em especial a Confraria do Verdelho dos Biscoitos, o que representa e o que defende a confraria?
JAA - A nossa confraria, como várias outras, é uma associação privada, sem fins lucrativos, através da qual um conjunto de pessoas se reúne, em irmandade, ou seja, como irmãos, para concretizar um determinado fim. Comparativamente com outras associações, as confrarias, tanto pela ancestralidade das suas origens como pelo cunho peculiar e simbólico adequados à dignidade dos produtos que representam, regem o seu funcionamento por um conjunto de preceitos próprios… ritualistas.
Centrando ainda mais particularmente nas que se centram no vinho, como bem definiu João Carvalho Ghira, em alocução proferida na II Festa da Vinha e do Vinho dos Biscoitos, “na generalidade, as nossas confrarias báquicas defendem o vinho e os consumidores, fazem a apologia da qualidade e propõem-se divulgar a excelência de uma bebida que, já foi dos deuses e será sempre dos homens que desejam ser como deuses: senhores da sabedoria, donos do amor, amigos uns dos outros.”
No nosso caso visamos a defesa, promoção, valorização e divulgação do vinho verdelho dos Biscoitos e demais vinho de qualidade da Região Autónoma dos Açores e seus contextos. Esta é uma missão que consideramos muito relevante, como se comprova pelo nosso objeto e ação usufruírem do reconhecimento oficial de utilidade pública.
Deste modo, em suma, procuramos cultivar e divulgar o conhecimento sobre este nosso néctar vínico, congregando amizades que ajudem a fortalecer a necessidade de o fazer perdurar enquanto produto de excelência, obviamente defendendo as únicas condições que permitem produzi-lo de forma genuína: o nosso território vitícola dos Biscoitos, desde o solo aos muros de pedra, passando pelas covas; a rainha verdelho, acompanhada de outras castas tradicionais, cujas plantas e uvas são temperadas pela maresia e adoçadas pelo sol; e saberes de centenas de anos no lidar com estes elementos naturais bem como com as práticas próprias das adegas. A isto associam-se os mesmos séculos de história e vivências.
JP – Com a publicação do Decreto-Lei n.º 17/94, de 25 de janeiro, os Biscoitos passam a deter uma área protegida dominada de DOP – Denominação de Origem Protegida para vinhos licorosos e com a publicação da Portaria n.º 34/2012, de 12 de março a área passou também a deter o estatuto de DOC – Denominação de Origem Controlada para a produção de vinhos de qualidade e vinhos espumantes. Qual é o papel da Confraria na defesa e divulgação desta área protegida no concelho da Praia da Vitória?
JAA - A Confraria teve e tem um papel muito importante em relação a esta área. Efetivamente, porque sem uvas não há vinho, sem videiras não há uvas e sem as nossas curraletas não se reúnem as condições que permitem o singular vinho verdelho dos Biscoitos, um dos nossos papéis essenciais foi e é o de lutar pela proteção deste território.
Os diplomas legais que reconheceram as denominações “Biscoitos” para a produção e comercialização de vinhos foram efetivamente muito significativos mas, por si, não garantiram qualquer defesa da integridade da respetiva área geográfica de produção vitivinícola. O que diretamente fizeram, e fazem, é determinar que só podem ostentar a indicação de serem dos “Biscoitos” os vinhos que respeitarem um determinado conjunto de regras, incluindo serem provenientes de uvas cultivadas em vinhas desta freguesia, em área demarcada, correspondente às zonas de altitude igual ou inferior a 100 metros.
Por razões e ameaças diversas, isso não é suficiente para a salvaguarda da referida área pelo que a Confraria, como algumas outras “vozes”, intentou, ao longo do tempo, um vasto conjunto de iniciativas que, passo a passo, foram resultando em alguma defesa de parte da zona demarcada.
Essa salvaguarda começou a ser materializada através da aprovação, pela Assembleia Municipal da Praia da Vitória, em 1997, de “Medidas preventivas para a zona litoral da freguesia dos Biscoitos”, ratificadas por Resolução do Governo Regional dos Biscoitos no ano seguinte. Esta decisão governativa foi acompanhada pela criação de um grupo de trabalho multidisciplinar, incluindo um representante da Confraria do Vinho Verdelho dos Biscoitos, grupo esse encarregado de “promover e supervisionar a realização do estudo de salvaguarda do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos, na ilha Terceira, propondo a delimitação geográfica da respectiva área, com vista à sua eventual classificação como "Paisagem Protegida de interesse Regional".
Em 2005 o Plano Diretor Municipal da Praia da Vitória assume como “Paisagem Humanizada e Protegida dos Biscoitos”, com determinação de algumas medidas específicas, a área das vinhas dos Biscoitos que viria a ser classificada pelo Governo Regional dos Açores, em 2011, com a categoria de área de paisagem protegida, integrando-a no Parque Natural da Terceira.
Visto que a defesa dos contextos próprios do verdelho dos Biscoitos implica uma multiplicidade de elementos, inclusive no que respeita ao território da zona demarcada, é imprescindível e contínuo o trabalho de pugnar pela melhoria dos mecanismos de proteção e de aproveitamento do potencial existente.
JP – Atualmente, como analisa a produção e a área protegida do vinho dos Biscoitos?
JAA - Sem abordar as questões específicas de variação anual da produção por fenómenos atmosféricos e suas várias consequências, a tendência a que assistimos nos anos mais recentes, e que esperamos que se materialize e reforce, é de aumento da área cultivada. Tal tem resultado de ações de promoção local (das autarquias, da Confraria e também de outras entidades), de incentivos governamentais e de investimentos privados, em muitos casos conjugados entre si.
Também se tem verificado um incremento na valorização dos produtos, para já ainda muito centrados nos próprios vinhos, mas já com alguns apontamentos de novos empreendimentos também a pensar no enoturismo, juntando-se à precedente, sonhadora e concretizadora Casa Agrícola Brum e ao seu Museu do Vinho dos Biscoitos. Felizmente, a zona litoral dos Biscoitos têm sido alvo de atenção por bons motivos, de verdadeira índole vitivinícola, por pessoas da freguesia e de fora da mesma, muitos deles unidos na Adega Cooperativa dos Biscoitos e outros de forma mais individual. É necessário continuar a contrariar a ideia das “vinhas dos Biscoitos” como espaço de procura para construção e usufruto de uma “adegazinha”, ao lado das zonas balneares.
Para que os melhores cenários se concretizem, os atuais e, esperemos, futuros vitivinicultores precisam de toda a atenção e ajuda que se lhes possa dispensar, desde soluções para o problema da escassez de mão de obra, preferencialmente qualificada, a acompanhamento e apoio técnico.
Procurando complementar a resposta, o mais diretamente possível, acrescento ainda que é necessário também continuar a evoluir no sentido de aumentar a percentagem do vinho que é produzido nos Biscoitos como vinho com certificação “Biscoitos”. A bem da genuinidade, da qualidade e da justa e reforçada recompensa de quem se dedica a esta atividade.
JP – Empossado recentemente como Grão-Mestre, quais os projetos que tem para os próximos 4 anos?
JAA - A equipa diretiva que lidero e a Confraria no seu todo tem um plano quadrienal delineado e aprovado visando o desenvolvimento da nossa missão estatutária. A nossa visão estratégica é a de, sem nunca prescindirmos do nosso foco e princípios, continuarmos a desenvolver sintonias e implementar ações com diversos parceiros em favor do vinho verdelho dos Biscoitos e da vitivinicultura regional. Com todos aqueles que partilhamos desígnios comuns, desde a Junta de Freguesia dos Biscoitos ao Governo Regional dos Açores, passando pelos municípios da ilha e por um conjunto vasto de outras entidades, sem nunca esquecer os produtores, queremos reforçar a imagem e o posicionamento dos nossos produtos de excelência, atendendo aos seus contextos.
Como consta do plano mencionado, e na linha do já dito, como primeiros contextos, temos os Territórios. Os vinhos, pelo menos os que nos interessam, procedem de uvas e estas não são órfãs. São filhas, pelo lado paterno, de terrenos muito particulares que, quer na sua criação quer no seu dia-a-dia, são moldados pela natureza e pela mão humana. Para nós, o expoente máximo destes territórios são os que compõem a nossa Zona Demarcada e destes, de forma particular, os que integram a área classificada como Paisagem das Vinhas dos Biscoitos.
Mas as tais uvas também têm mães: as videiras. As das castas Verdelho (original e roxo) são naturalmente as que mais nos fazem brilhar os olhos, sem esquecer a importância de outras, também tradicionais e devidamente autorizadas, que as complementam. Juntando as videiras ao território temos as Vinhas.
Encontradas as ascendências das uvas casamo-las com os imprescindíveis artistas da vinificação e obtemos os preciosos líquidos que nos apaixonam: os Vinhos. Primazia aos puros Verdelhos e aos Verdelhos equilibrados com contributos de outras castas.
As Comunidades que geram estes produtos também merecem atenção. Tal como é necessária toda uma aldeia para educar uma criança, a criação, a sustentabilidade, a promoção e até a degustação de um vinho de qualidade não deve ser um ato solitário. Importa conhecer, envolver, divulgar e ajudar quem já se dedica a alguma, algumas ou até a todas essas etapas do mundo do vinho. Urge contribuir para fazer crescer essa prole: demovendo alguns de perpetuarem escolhos e aglomerando outros, até então indiferentes a estes nossos objetos e produtos.
O contínuo fortalecimento da Confraria é condição para a sua eficácia, como entidade que se deseja representativa da moral e da ética no ecossistema do Vinho Verdelho dos Biscoitos e seus contextos. Agregação de competências, aprimoramento de práticas, diversidade de meios e estratégias para o cumprimento dos fins determinados, devidamente sustentados por uma estrutura forte e impulsionadora são essenciais.
Inovar sem perder tradições identitárias, dialogar sem derivar o rumo e articular em função da eficiência deverão ser regras basilares. Privilegiar o planeamento (incluindo a sua divulgação) e a ação meticulosa, sem menosprezar oportunidades imprevistas, são modos executivos essenciais.
No domínio das ações, entre diversas outras que estão previstas, destacam-se; contribuir para a construção e implementação de um plano de dinamização e valorização da Paisagem das Vinhas dos Biscoitos; participar na definição e disseminação das regras de uso dos territórios, exigindo o seu cumprimento; promover a expansão do conhecimento científico sobre as castas verdelho (original e roxo) e outras castas tradicionais e continuar a promover a primazia das mesmas nas vinhas dos Biscoitos; promover uma rede de pontos de interpretação da vinha e do vinho dos Biscoitos; promover o aumento da adesão dos vitivinicultores aos sistemas de certificação existentes, bem como associar os seus produtos a outros distintivos de qualidade; realizar entronizações de Confrades, eventos enogastronómicos, atividades enoturísticas e promover a segunda edição das Jornadas do Verdelho dos Biscoitos.
Entrevista: Rui Marques
Fotos: CMPV
