Decorre ainda nos Açores o debate sobre onde ancorar os cabos submarinos que ligam as ilhas à civilização e com argumentos técnicos num e noutro sentido: que devem estar numa única ilha, em S. Miguel; ou que devem repartir-se por duas, S. Miguel e Terceira. Os argumentos técnicos, a avaliar opiniões de quem sabe, favorecem a ancoragem nas duas ilhas; no entanto, S. Miguel pugna que deve sê-lo apenas numa única ilha.
No debate tem sido ausente a argumentação estritamente política: de que deve estar um cabo ancorado na Terceira por razões de ordem política, que uns dirão nomeadamente de natureza arquipelágica e atlântica, porque a autonomia política dos Açores está assente sobretudo nas duas maiores ilhas em termos populacionais; mas em rigor é muito mais do que isso – por tratar-se de questão política e não técnica.
Este tipo de dilema político já esteve em discussão na Constituinte da 1.ª Constituição Portuguesa de 1822. Discutia-se aí onde se colocaria os Açores na geografia política do país: uns defendiam que as ilhas pertenceriam ao continente americano ou ao africano e, portanto, não seriam espaços unitários do país como eram os restantes espaços do continente português; pois pertencendo geograficamente a esses continentes seriam territórios ultramarinos e não território português propriamente dito. Outros, a maioria, defendiam que a questão não era de geografia, mas de política; tendo pertencido ao país desde o seu descobrimento e povoamento; tendo tido elevadíssimo relevo na própria história do país, quer entre 1580 e 1582, em termos da própria portugalidade, quer na 1.ª metade do século XIX, no liberalismo, no constitucionalismo e na criação do 1.º governo constitucional e 1.ª administração moderna; sendo ilhas que transportam muitos elementos significativos da história de Portugal, concluíram que tudo isso fazia das ilhas uma parte significativa do país e eram, pois, um espaço tal e qual outro, como no centro, no norte ou no sul. E assim ficou deliberado: as ilhas e a sua instituição constitucional como parte do território nacional seriam efetivamente espaços pátrios, designadas então pela Constituição por ilhas adjacentes. (expressão já usada em séculos anteriores e aqui usada sem quaisquer resquícios de menoridade; era simplesmente uma expressão geográfica de então e em termos políticos o adjacente era positivo porque de pavilhão político).
Este foi e é um acontecimento de grande dimensão: se a posição contrária tivesse vencido as ilhas teriam sido geridas pelo sistema de governação ultramarina; e hoje seríamos ilhéus, mas com certeza muito diferentes.
Hoje, nesta questão dos cabos, passa-se algo idêntico: é impensável que um dos cabos não seja ancorado na Terceira. Porque não são questões técnicas, nem de geografia; mas são de política. Quais as consequências políticas da Terceira ficar de fora da ancoragem – isso ninguém pode afirmar; mas se aprendermos com a nossa identidade cultural e política – sabemos que, por uma questão política, a ancoragem na Terceira, será uma realidade, doa a quem doer. O património genético independentista de S. Miguel terá nascido, nomeadamente, no ciclo da laranjeira – cujos lucros eram do Estado e não de Angra do Heroísmo (apesar da Terceira injustamente ter arcado com todo o desmérito no pensamento da elite micaelense); podemos estar a ver nascer um novo ciclo independentista em que as ilhas querem ser de cada ilha e não dos Açores de uma única ilha (se é que isso já não começou antes, nomeadamente com a revisão do Estatuto em 1998).
Arnaldo Ourique
(Investigador de Direito Constitucional Autonómico)
